"O Homem da Tenda": médico do São João lança memórias da Covid-19

De um dia para o outro, em 2020, o rosto de Nelson Pereira passou a ser familiar em Portugal. Presente na linha da frente da pandemia desde o primeiro dia, o médico do Hospital de São João, no Porto, decidiu passar para livro as memórias e as marcas da Covid-19. "O Homem da Tenda" - assim se chama a obra - não é um diário, nem é uma reportagem. São retratos da vida de um médico, que encontrou na pandemia um contexto inimaginável em países desenvolvidos.

"Os primeiros dias de janeiro de 2020 trouxeram consigo a notícia, com origem na China, de uma pneumonia de origem desconhecida. Este tipo de notícias, não sendo vulgar, não é também extraordinário. Tenho memória de vários casos semelhantes que fizeram o seu curso. O agente foi identificado. O surto foi controlado. A notícia morreu. Mas desta vez não foi esse o caso, sendo certo que provavelmente ninguém, por essa altura, seria capaz de imaginar o que os meses seguintes trariam de desafiante e transformador à nossa existência enquanto indivíduos e enquanto sociedade."

Assim começa o livro de Nelson Pereira, diretor da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva do Centro Hospitalar de São João, que já esteve em cenários de guerra e de catástrofe. A perspicácia treinada durante anos lançou o alerta.

"Claramente, logo no princípio, percebi que este acontecimento iria ser memorável."

Figura central no combate à Covid-19, no Hospital de São João, no Porto, Nelson Pereira foi desafiado a escrever um livro. O resultado chama-se "O Homem da Tenda" e reúne memórias recuperadas no telemóvel e em notas foras de horas.

"Os dias eram muito longos e muito cansativos. Na maior parte das vezes em que era possível ir a casa, era às três, às quatro ou às cinco da manhã, e, por estranho que parecesse, no meio de tanto cansaço, era difícil dormir. Portanto, esta insónia do cansaço, às vezes, levava-me a escrever algumas coisas:"

A 7 de março de 2020, o Hospital São João espantava o país com a montagem de um hospital de campanha. Foi o dia zero de uma grande mudança.

"A maior parte das pessoas não estava a ver além e, no momento, não perceberam. Bastaram três ou quatro dias para perceberem. E esta tenda, no Hospital de São João, acabou por ser uma imagem de marca da pandemia."

A capa divide o rosto de Nelson Pereira em dois, com e sem máscara. O livro retrata as duas visões, a do médico e a do cidadão.

"Nos dois primeiros meses vivi na cave da minha casa. Depois dessa fase mais intensa, normalizámos muito a forma de estar e de viver."

Por uma única vez, a emoção sobrepôs-se à razão. Foi uma espécie de catarse.

"Chorei uma única vez. Foi num dia quando a cheguei a casa, às quatro da manhã, e já não se aguenta mais."

O Livro "O Homem da Tenda" é lançado esta quinta-feira, mas foi escrito quando a pandemia dava sinais de abrandamento. Nelson Pereira não se iludiu.

"Olhando de novo para a pandemia penso que podemos estar moderadamente otimistas, mas só até onde a vista alcança. Espero que não haja um recrudescimento dramático de infeções, mas tal só será verdade se não surgir uma variante, mais patogénica, mais contagiosa, e capaz de iludir a proteção conferida pela vacinação, ou se não existir uma aceleração da perda da imunidade conferida pela vacina. Corro por isso sérios riscos de vir a ser desmentido pelos factos, já durante o período que mediar o fim da escrita destas linhas e a edição e publicação do livro. Espero honestamente que não venha a haver justificação para a escrita de um segundo volume do mesmo!"

Os últimos parágrafos do livro levam o autor a ponderar, novamente, a utilidade de mais notas.

"Ainda não comecei, mas se calhar é uma boa altura para voltar a tomar uma ou outra."

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