O padre "B", o frei "W", a "casita". Os testemunhos de quem foi abusado na igreja

O relatório revelado esta segunda-feira evidencia que os abusos ocorreram principalmente entre os 10 e os 14 anos de idade (a média era de 11,2 anos, sendo de 11,7 no caso dos rapazes e de 10,5 no das raparigas), 57,2% foram abusados mais do que uma vez e 27,5% referiram que foram vítimas durante mais de um ano.

"Aviso aos mais sensíveis. A linguagem transcrita é dura, intensa e comovente, como o foi a vida destas crianças, hoje pessoas como nós." O aviso com que se iniciou a leitura de alguns dos testemunhos das vítimas de abusos sexuais na Igreja Católica preparava - da forma possível - quem ouvia a conferência de imprensa desta manhã.

Ouve-se ler o testemunho de um homem nascido em Lisboa, numa casa "onde não havia nem água, nem luz". Foi para um seminário no Norte do país porque os pais viram nele "a vocação para ser padre", algo que o próprio dizia ser comum "nas famílias numerosas".

Foi com dez anos que chegou ao seminário. "O padre 'B' era o prefeito da camarata e engraçou comigo. Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me. Perguntava-me se eu já pecara."

Este homem, então criança, vivia em sobressalto: "Tinha medo porque era pecador e ia para o inferno. Mandavam-me ir buscar rebuçados de cada vez que tivesse maus pensamentos. Houve um dia em que consegui 26 rebuçados."

O caso acabou por circular nos corredores do seminário e, quando chegou ao reitor, o rapaz acabou por ser expulso. Depois de ser recusado pela família, entrou numa outra instituição católica, em Leiria. "Eram 20 rapazes órfãos. Estava lá o frei "W". Era bem pior porque era sádico, porco, muito mau."

Seguiu-se a leitura de outro testemunho, desta feita de uma vítima nascida na década de 1980, conhecida apenas por "M", sobre o que aconteceu na excursão de uma escola privada. Tinha 12 anos e durante a noite sofreu um abuso violento pelo padre que acompanhava a viagem, o professor de Educação Moral Religiosa e Católica.

Aconteceu o mesmo a "pelo menos mais outros dois rapazes" com quem partilhava quarto. "Éramos os mais tímidos, talvez os mais medrosos, estávamos juntos. Eu fui uma noite, o "F" outra e o "H" foi duas vezes: a primeira e a última da viagem."

Embora menos invasivos, os abusos sobre raparigas não passam ao lado do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica.

Hoje com menos de 23 anos, uma rapariga conta que, então no sétimo ano de escolaridade, confessava-se com regularidade e foi aí que nasceu o abuso por parte do responsável, com cerca de 45 anos.

"O padre fazia-me perguntas porcas no confessionário, obrigava as miúdas a falar de coisas porcas. Não tocava nas raparigas, mas perguntava se nos masturbamos, se enfiamos o dedo, se pensamos em fazer amor. O mesmo acontecia com muitas moças dos escuteiros e da catequese", explicou.

Outro dos casos apresentados é o de uma mulher que não fala em nome próprio, mas sim pelo irmão que, nascido nos anos 1940 e recém-falecido, nunca conseguiu fazer-se ouvir publicamente.

"O que ouvi não foi bonito e não posso eu ir para outro mundo, falecendo, a carregar comigo este segredo", desabafa a irmã. "Uma vez, na tal casita, estranhei".

"Fui espreitar e lá estava o meu irmão, coitadinho, ele era muito bonito e perfeito, branquinho de pele." O jovem "estava despido de calças e roupa de baixo, e o padre, meio que no chão, a pôr o sexo dele na boca."

Era coisa, conta, "que nunca tal tinha visto na vida". O irmão "detestava padres", tanto que disse que "quando morresse não quereria nenhum. E assim foi quando faleceu há pouco tempo."

São vozes que, provavelmente, nunca mais se ouvirão fora deste relatório e destes relatos, mas que ficam para sempre escritas no documento apresentado esta manhã.

A Comissão Independente validou 512 dos 564 testemunhos recebidos, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de vítimas da ordem das 4815.

Estes testemunhos referem-se a casos ocorridos no período compreendido entre 1950 e 2022, o espaço temporal que abrangeu o trabalho da comissão.

O sumário do relatório, contudo, revela que "os dados apurados nos arquivos eclesiásticos relativamente à incidência dos abusos sexuais devem ser entendidos como a 'ponta do iceberg'".

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