Reportagem TSF no Corvo, nos Açores, onde as preocupações são cada vez mais outras, afastadas da pandemia.
No último fim de semana de abril, quando o Continente ainda estava em estado de emergência, quase metade da população do Corvo, nos Açores, assistiu a mais um marco do regresso à normalidade de uma ilha que foi o primeiro território da Europa a ter quase toda a população vacinada contra a Covid-19: um espetáculo promovido pelo grupo de teatro amador da ilha, "Os escarépios" - palavra usada pelos antigos para dizer algo como 'sai daqui diabo', mas que pelo dicionário aponta para uma doença de má fama.
A entrada custa 3 euros e a sala está cheia, deixando alguns à porta.
Um dos atores amadores é o único médico da ilha que segundo o próprio não terá mais de 400 habitantes, pelas contas que teve de fazer para a vacinação.
Todos estão de máscara no pavilhão da vila, mas o distanciamento físico rapidamente desapareceu com António Salgado a explicar que já estava à espera que isso acontecesse a partir do momento em que percebeu que a procura ia ser elevada.
"A estratégia foi agrupar por famílias ou pessoas que habitualmente já estão juntas", detalha o médico.
"Até aqui o Corvo estava negativo - desde o início da pandemia só existiu um caso de Covid -, mas cada vez que chegava alguém de fora era colocado de lado e toda a gente sentia o medo. Penso que isso passou completamente", sintetiza aquele que também é a autoridade de saúde pública da ilha.
"O teatro funciona, o rancho folclórico começou os ensaios, o grupo que canta a mesma coisa... os miúdos daqui a pouco vão fazer umas marchas. A vida corre".
Mês e meio depois da vacinação de todos os que têm mais de 16 anos e que se quiseram vacinar, o médico pretende avançar com um estudo para perceber como está a imunidade real, efetiva, da população do Corvo contra a Covid-19 pois o efeito real da vacina ainda não dá certezas.
Uma ilha que é quase uma bolha
Nos serviços públicos e espaços fechados as ordens continuam a ser para usar máscara, apesar de pouco se verem distâncias de segurança e das máscaras ficarem, frequentes vezes, esquecidas no bolso.
"As pessoas aliviaram um bocadinho, mas nós sempre vivemos a Covid-19 de forma um bocadinho diferente mesmo antes de estarmos vacinados pois facilmente percebemos se está aqui alguém que não é de cá. Se somos só nós e ninguém é portador do vírus, alivia um pouco e agora com a vacina as pessoas sentem-se mais protegidas", explica o presidente da Câmara Municipal, José Manuel Silva, que acaba por recordar a ideia de bolha, tanta vezes referida pelas autoridades de saúde nacionais e que aqui quase que se aplica a toda uma ilha e não apenas a um agregado familiar.
O autarca avisa, contudo, que não podemos ter a ilusão de que estamos completamente livres da Covid-19 pois ainda não há estudos que o confirmem".
Bar aberto e testes, mesmo a quem está vacinado
Depois do teatro, nesse sábado do último fim de semana de abril, o único bar da ilha também esteve aberto até às três da manhã.
"Nos cafés as pessoas ainda são obrigadas a usar máscara, mas se entrar no BBC [Bar dos Bombeiros do Corvo] sem máscara ninguém lhe diz nada. A noite com a música e tal é uma noite desmascarada. No entanto, esse é um ambiente muito corvino: são as pessoas que normalmente já estão juntas", acrescenta o médico.
O tema BBC, o único bar da ilha, é sensível entre os corvinos, numa altura em que todos os outros bares do país estão fechados.
Para quem está de fora pode ficar a ideia de que os corvinos são irresponsáveis, sendo preciso conhecer as características do Corvo, uma ilha muito pequena, bastante isolada, onde poucos chegam de fora.
Contrariando qualquer ideia de leviandade, António Salgado explica que nos poucos restaurantes do Corvo, que recebem mais pessoas de fora "não controladas", a exigência é maior e tem de se usar máscara.
O médico refere, igualmente, que mesmo os que estão vacinados quando saem da ilha e regressam têm de fazer o teste e não frequentam cafés e outros sítios até terem o resultado.
Sedentarismo e muito cancro
Com o controlo do vírus no bom caminho, há cada vez mais tempo para pensar no resto que preocupa bastante mais o médico de família de toda a população do Corvo: o sedentarismo de quem mal anda a pé, numa ilha com muitos carros para tão poucas estradas; mas também aquela que classifica como a má alimentação dos corvinos e o muito tabaco e muita cerveja que demasiados consomem.
"O Corvo é uma ilha de sedentarismo exacerbadíssimo. As pessoas não andam a pé. E depois come-se muito mal, com muitos fritos e gorduras", carne de porco e raríssimo peixe - hábitos antigos que o médico tenta contrariar, além dos conselhos, frequentes, para que façam umas caminhadas, nem que seja à volta da pista de 800 metros do aeroporto.
"Temos muita doença cardiovascular e muito cancro", especialmente uma grande incidência de cancro do pulmão que deixa o clínico "muito preocupado".
"Não é fácil lidar com isto", diz António Salgado. Uma das prioridades é uma campanha para parar de fumar, que já está a ter resultados.