Levante-se o Réu

Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. São relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide. Às sextas, depois das 18h30.

O velho da puxada

Que homem tão frágil, que velho cansado, mas não foi sempre assim, pensei. Abri-lhe a cancela dos réus, a jaula aberta dos acusados, e ele entrou no rectângulo

- Muito obrigado, senhor...

como um cavalheiro, arrastando a perna, os braços pendurados. Cataratas brancas, raiadas de vermelho, uma barba branca com alguns pêlos pretos a resistirem à velhice. A doença diária chegou.

- Eu hoje não estou bom para falar, não vou poder dizer nada!

- Hoje, o senhor também não tem de falar, só tem de ouvir, disse o oficial de diligências, para o descansar.

- Eu hoje não posso falar, não consigo. Tenho zumbidos nos ouvidos, estou completamente doido, sotôra!

Todos no tribunal falavam agora com ele em modos de neto e de neta para o avôzinho que veio ouvir a sua sentença criminal.

- Ui, zumbidos, isso é terrível, pode ser um problema de tensão, pensou a procuradora.

- Tem de medir, acrescentou a juíza.

- Tenho de tomar um comprimido, hoje não tomei..., explicou o velho.

- Tem de tomar! Então a sua filha não lhe deu a medicação?

Mas o velho não estivera de manhã com a filha. Ele tem dez filhos, todos crescidos e independentes. E tem muitos netos. Nas primeiras sessões, vieram defendê-lo em tribunal. A juíza repetiu, lendo a sentença, alguns depoimentos da defesa:

- É muito boa pessoa e muito respeitado por todos, fui comprar-lhe um petromax, disse a neta, testemunha número quatro.

- Desde 2019 que vive numa arrecadação por baixo da casa da filha, é muito boa pessoa, calma, educada, muito querida cá e no Brasil, onde tem família, disse o neto, sexta testemunha.

O velho veio acusado de furto. Só que daqueles furtos que não se vêem: para se avaliar o tamanho do furto do homem é preciso fazer cálculos de tensão baixa, de electricidade.

A EDP alegou que, já em 2011, fora cortar a luz da casa do velho, por falta de pagamento. O piquete chegou, cortou e partiu. Depois, o senhor fez um contrato, mas não chegou a gastar electricidade. O contador não contava nada que fosse imputável ao homem. Então, em 2019, fez-se nova vistoria ( ou vestoria, como dizem as pessoas). O velho não estava em casa, mas os homens abriram a caixa cá fora e encontraram uma ligação directa à própria coluna do contador. Isto é, luz consumida antes de ser contada e, depois, cobrada.

Uma bela duma puxada caseira.

Ele disse que não, mas foi dado como provado que sabe ler e escrever. E agora, a EDP, que gere e vende serviços de tensão baixa, pedia, com cálculos de médias de consumos, imaginações matemáticas, quilovátios para aqui, tantos dias para acolá, um valor a receber. Segundo a EDP, a ligação esteve activa pelo menos entre 28 de Janeiro de 2016 e 28 de Janeiro de 2019. Três anos que agora tentava cobrar: 1810 euros e 79 euros.

Não é fantástico o mundo dos engenheiros e dos gestores? Como é que eles chegaram a estes 79 centimozinhos finais de uma electricidade gasta não em números concretos, mas em potência?

No fim, ganharam e o velho perdeu. Por furto de electricidade, foi condenado a 500 euros, mais três unidades de justiça, e a alternativa são 66 dias de prisão. E a pagar à EDP os tais 1810 euros e 79, mais juros de mora de 4%. Vai pagar? Sei lá, espero que sim. Ou, se calhar, talvez não. Poderá pagar? É a tensão baixa da EDP contra a tensão alta nas artérias. Zumbidos.

Disseram-lhe, no fim, para ir tomar os medicamentos, mas que coma, que coma antes.

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia

Recomendadas

Outros Conteúdos GMG

Patrocinado

Apoio de