Levante-se o Réu

Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. São relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide. Às sextas, depois das 18h30.

Portuenses desenganadas

Entraram muitos acusados na sala, o Luís, o Daniel e o Ricardo até tinham vindo de algemas nos pulsos, estavam ainda o Paulo e a Mónica, todos unidos pelo silêncio, só a Ana e a Marta é que quiseram falar. A voz de Marta tremia e os seus braços procuravam pouso, não era um peixe fora de água, mas uma espécie de contrário disso, Marta parecia uma gata atirada ao rio, aflita nas ondas. Meio sol entrava pela janela do velho São João Novo. Os reflexos trémulos do Douro, lá em baixo, iluminavam a colina.

- É mentira, não é verdade, respondeu Marta à juíza, eu não sabia de nada. Não compactuei com nada disto, que eu nem conheço os arguidos.

- Não sabe a razão porque a ligaram a estes factos?

- Não.

O procurador da República suspirou:

- Teve algum relacionamento com algum dos arguidos?

- O... o Daniel é meu ex-marido.

- Eu perguntei se conhecia os arguidos!, interrompeu a juíza.

- Peço desculpa... falava dos outros.

Nervos, nervos. Marta foi acusada de tráfico e posse de droga na sua própria casa. Mas disse que só viu a verdade, só percebeu o homem com quem se casara quando a polícia veio para as buscas.

- Não fazia ideia. Quer dizer, eu sabia que havia dinheiro. Um mês, ou três semanas antes, quando eu ia trocar de carteira, a minha carteira que estava no armário do meu filho, tinha dinheiro. Confrontei o meu marido com isso.

- Quanto dinheiro?

- Tinha maços de notas. Não contei.

(A polícia contou: 17.960 euros.)

- Eu logo tive uma discussão com o meu marido, eu confiei que ele fosse tirar dali o dinheiro. Mas não tirou. Quando a polícia chegou, até fui eu que fui buscar a carteira. Eu sabia que aquele dinheiro não era nosso.

- O que achou que era? Achou que era alguma coisa ilícita?

- Primeiro pensei que era do trabalho, ele sempre trabalhou, mas percebi que era demasiado. A partir daí, discutimos muito. Ele passou a dormir no sofá. Como casal não estávamos bem.

- Pensou que o dinheiro era de drogas?

- Drogas ou outra coisa, não sei. Ele virava-me costas, ia embora, ou então dizia para não me meter.

- E a mochila na sala?

A mochila escondida no móvel, junto ao contador da luz, era o resto da história. Cerca de dois quilos de cocaína e de heroína. Quando a polícia chegou, Marta estava na sala com a filha, que faltara à escola por estar doente. A mãe metera baixa na loja.

O ex-marido de Marta não abriu a boca, quase não olhou para ela, no tribunal. Também tiveram um filho que ainda é muito pequeno.

À segunda mulher, Ana, tinham-na sentado ao lado de Paulo, o ex-namorado. A sua história de amor era mais curta. Três semanas depois de engravidar, decidiram os viver juntos. No dia 24 de Agosto, alugaram uma casa, é uma data histórica da revolução liberal no Porto, existe o Campo 24 de Agosto de 1820, mas se ela não esqueceu a data foi porque, como disse de voz mansa:

- Entretanto descobri coisas pessoais e terminei a relação logo a 31 de Agosto. A partir do momento em que terminámos, não mais falámos.

Como a casa ainda ficara em seu nome, já que o ex-namorado não tratou de a retirar do contrato, foi detida. A casa por ela alugada, e onde nunca viveu, transformara-se em entreposto de droga.

- Desta actividade de tráfico não sabia de nada?

- Não.

O que já sabia era isto, que finalmente contou ao tribunal:

- Chegou a fazer-me coisas.

- O quê?

- Traições, conversas com outras mulheres.

E se as duas acusadas falavam verdade, infiltrava-se agora, nesta história de tráfico, a brisa apodrecida dos amores falhados, de mentiras e desenganos. A droga estraga corações.

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia

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