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Há em Lisboa uma grande loja de tapetes que também vende produtos iranianos e é aí, num andar de cima do bairro de Benfica, que se encontra o verdadeiro, o melhor, pistachio do Irão. O senhor Wahid contava isto na sala de audiências, mas já tinha feito o mais importante: desistia da queixa contra o português que o agrediu na rua, quando ia despejar o lixo. É um homem de paz. O senhor Wahid aprendeu português no Brasil e está preocupado com o Irão, cheio de protestos, violência, mortos, desde o primeiro assassínio da jovem Mahsa Amini pela polícia dos costumes, por supostamente não usar bem o lenço islâmico.
Uma alegria iraniana
- Infelizmente as pessoas... os que estão mandando no nosso país também não são bons. Estragaram tudo.
A juíza mandou entrar o agressor do senhor Wahid. Era um homem muito grande, de cabelo oxigenado.
- Foi o senhor que bateu naquele senhor?
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- Bati, não. Eu não bati em ninguém.
- Não bateu? Mas não é o senhor Márcio?
- Sou, mas...
- Ouça a senhora procuradora, se faz favor!, ordenou a juíza.
- É o seguinte: aquele senhor teve a boa-vontade de desistir do procedimento criminal contra si. Eu não sei se o senhor está a entender o alcance disto. É que não irá haver julgamento e obviamente o senhor sai daqui como entrou, sem condenação nenhuma. Mas só porque aquele senhor teve a bondade de desistir do procedimento criminal. Portanto, o senhor, no mínimo, pede desculpas àquele senhor, acho que é o mínimo...!
E a juíza:
- Ouviu, senhor Márcio? Estou à espera que o senhor peça desculpas ao senhor.
Silêncio, silêncio. O grande corpo de Márcio oscilava na cadeira como um arranha-céu em terramoto, o centro de gravidade estável, mas tudo a tremer à volta. Não queria pedir desculpas nenhumas e as duas magistradas perceberam isso.
- É que o senhor é capaz de sair daqui com uma condenação. Tem 50 por cento de hipóteses.
- Até porque temos as imagens, não é?, continuou a procuradora.
Márcio abanou o cabelo oxigenado.
- As imagens não...
- As imagens não?!...
E a procuradora levantou um papel, o fotograma de um vídeo de vigilância com o punho de Márcio no queixo do iraniano.
- Eu peço desculpas ao senhor, apressou-se Márcio.
A juíza virou-se para o senhor Wahid:
- O tribunal agradece o seu grande gesto em desistir da queixa. E também lhe pede que aceite as desculpas do senhor arguido.
- Está bem, senhora.
A natureza semipública do crime - ofensa à integridade física simples - permite a desistência por parte do ofendido, desde que o arguido também esteja de acordo. Estava encerrada a audiência.
- Senhor Wahid, mais uma vez obrigado pela sua presença e felicidades para a sua esposa e para os vossos filhos. Bons êxitos aqui e que sejam, na nossa terra, muito bem recebidos.
- Posso dizer uma coisa?
- Pode.
- Na minha terra, quando entra num ambiente assim, quando a gente entra para um ambiente em que vai ser julgado por alguma coisa, tem que entrar com medo. Tem que entrar com muito medo e sair com mais medo ainda. Mas aqui eu vejo a risada, o sorriso de vocês e é maravilhoso!
- Quem tinha de entrar com medo era aquele senhor, ele é que vinha ser julgado.
- Sim. Mas o ambiente é muito pesado. Mas adorei o ambiente daqui. Enfim, tomara eu nunca mais voltar aqui...
- É isso.
Maravilhoso, disse Wahid. Mas quantas alegrias e quantos desapontamentos o esperam, senhor Wahid.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia