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1.
Acabei o ensaio de "Ficheiros Secretos", na magnífica Casa da Música.
Daqui a bocadinho, estarei em palco perante mais de mil pessoas. E para a semana será no Tivoli e a sala já está também esgotada.
É um momento muito bonito, um momento de felicidade pois, de alguma maneira, tudo o que fiz, tudo o que sou, parece ter desaguado aqui, num capital de confiança que leva tanta gente a pagar um bilhete para me ouvir.
Ouça o Postal do Dia.
2.
São quase seis e meia da tarde.
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Estou sozinho no camarim.
De vez em quando batem à porta, perguntam-me coisas, se estou bem, se tenho tudo o que preciso.
Tenho fruta do dia.
Sandes de queijo e fiambre, bebidas.
O lugar é incrível, esmagador.
Mas quero confessar-te que estou mais sozinho do que alguma vez estive. Tenho ao meu lado a mala vermelha que carregarei para palco, a mala que tem dentro memórias do que levaria se tivesse de partir para a viagem que um dia todos acabaremos por fazer.
Sinto-me sozinho estando mais acompanhado do que alguma vez estive, não sei bem explicar-te melhor.
Penso nos meus mortos.
Nos que me chamavam Miguel, nos que existiam antes de eu existir.
A mãe.
O pai.
As avós.
A tia Cristina.
Nos amigos que partiram.
Queria tanto que estivessem comigo hoje e na próxima semana.
Queria tanto que a minha mãe me visse.
Queria tanto que a avó Joaquina tivesse hoje trabalhado menos tempo na sua máquina de fazer soutiens, trabalhasse menos e pudesse ter vindo ao Porto e dormido no hotel onde ficarei hoje.
A avó Joaquina nunca dormiu num hotel.
Nunca viu um espetáculo.
Nunca comeu num restaurante.
Nunca imaginaria que o seu neto, o amor da sua vida, pudesse um dia subir a um palco.
3.
Estou num camarim magnífico.
Tratam-me como se fosse especial, mas eu sou apenas o que tem medo. Um medo de dentro, um medo que não é o de não estar à altura, mas o outro, o de poder desiludir-me a mim próprio, o de poder estar a correr e a transformar-me no que critico nos outros.
Tratam-me como se fosse especial e não imaginam o que te quero contar.
Neste momento, sou apenas, e outra vez, o miúdo de que já não me lembrava.
O miúdo que jogava à bola na rua até à hora em que a minha mãe ia à janela para me dizer que o jantar estava na mesa.
O miúdo que adormecia com uma luz de presença e um ursinho de peluche.
O miúdo que rezava à noite a Jesus e a Nossa Senhora para que todos ficássemos bem e pudéssemos ter uma vida melhor.
O miúdo que sonhava com o futuro, que achava que podia ser jornalista ou jogador da bola ou cantor.
Que acreditava no amor, mas não convencia as meninas no recreio.
Que queria um dia ter filhos e ir ao cinema todos os dias.
4.
Falta pouco para entrar em palco.
A Ana acabou de bater à porta e disse-me que sim, que me ama e acredita.
Dei-lhe um abraço há dois parágrafos atrás e pedi-lhe uma hora sem que ninguém me chateasse.
Quando acabar este postal vou fechar os olhos e mergulhar um bocadinho em mim, no que deixei para trás, nos que amo, nos que desiludi, nas imagens que tenho na cabeça.
Nos meus filhos, claro.
O André.
O Miguel.
O Afonso.
A Benedita.
No que construí, no que destruí.
No que me faz ser este.
No que conheces de todos os dias.
Um homem que faz tudo para ser sempre uma criança.
Não há ambição e arrogância maior do que essa. Uma loucura tão grande como a de Ícaro, o que tentou voar e se despenhou no mar da história.
Um abraço e desejem-me o que sabem que se deseja quando se sobe a um palco - o único lugar em que a verdade é possível.