Postal do Dia

Já ninguém escreve postais, mas a TSF insiste e manda bilhetes postais com destinatário. Em poucas palavras mas com ideias que fazem pensar: "Postal do Dia", com Luís Osório. De segunda a sexta-feira, depois das 18h00 e sempre em tsf.pt.

A morte de António Almeida Henriques ainda é vida

1.

António Almeida Henriques morreu há quase dois anos.

Era presidente da Câmara de Viseu e gostava de gostar das pessoas. Tinha muitos amigos, muitas ideias que desejava concretizar, muito futuro pela frente.

Cultivava as conversas, interessava-se por gente concreta, adorava desafios e detestava ficar colado a realidades formatadas. No seu íntimo irritava-se quando definiam Viseu como uma terra conservadora e bafienta, por isso (talvez por isso) tenha sido um dos primeiros entusiastas das "cidades inteligentes".

Gostava de estar na vanguarda.

Gostava também de ir ao Viriato ver o que lá se passava, as peças de teatro, a música, o que se andava a fazer.

2.

Partiu faz agora dois anos e foi dos primeiros a morrer com Covid.

Teve sintomas ligeiros.

Depois piorou.

Depois foi internado.

Piorou ainda mais.

Transferiram-no para os cuidados intensivos de onde nunca saiu.

A propósito dos "Ficheiros Secretos" que levo amanhã ao Teatro Viriato, recebi uma mensagem de Cristina, a sua mulher.

Pediu-me desculpa por não poder estar presente, mas na sua tão simpática mensagem estava ainda a profunda incredulidade, a absoluta incompreensão por tudo o que aconteceu ontem - é sempre ontem para quem sofre um abalo tão forte.

Ela e os três filhos - a Bibi, o Ricardo e o Gonçalo.

3.

Uma mensagem que me comoveu e me fez regressar ao meu próprio internamento.

Estava em Évora com sintomas ligeiros.

Depois fiquei pior.

Depois fiquei ainda pior.

Fui internado e numa noite, comigo banhado em suor, puseram-me um cateter e deram-me uma injeção.

Tudo se preparara para me transferirem para os cuidados intensivos. Mas o meu corpo reagiu de uma maneira e não de outra - não tive qualquer responsabilidade nisso, apenas a vida, o destino ou Deus quiseram que eu estivesse aqui e não noutro lado qualquer.

4.

Isto e tão curto, tão volátil.

Estamos aqui e deixamos de estar.

É um fósforo.

Tudo se pode desmoronar e nós a dilacerar-nos por coisas tão pequenas, por conversas de chacha, quando na verdade deveríamos estar concentrados em viver, em estar, em ser.

Todos os dias, em todas as horas, partem pessoas boas.

Às vezes até me vem à cabeça - o que não faz sentido - que os maus, que os canalhas, parecem ter uma longevidade maior.

Mas não, não pode ser.

Todos os dias partem pessoas antes de tempo.

Partem crianças e jovens.

Partem pessoas cobertas de sonhos e futuro.

E ficam outros que os choram, alguns até que morrem mesmo continuando vivos, difícil aguentar o peso da ausência quando quem parte é tanto no momento em que parte.

5.

Não conheci o António a quem todos chamavam Quim.

Nem quando era presidente da Câmara ou quando era secretário de Estado ou quando era deputado.

Nunca com ele me cruzei, mas quero que ele saiba que troquei mensagens com quem o continua a esperar todas as noites como se ele não tivesse morrido.

Quero que ele saiba que amanhã abraçarei os seus filhos e lhes direi o óbvio: que são afortunados por terem a memória de um homem que abraçava, que se orgulhava deles, que era querido mesmo por quem não pensava como ele.

Não é coisa pouca.

E talvez não seja coisa que se diga a quem perdeu um pai faz agora dois anos.

Um pai que partiu antes de completar 60 anos.

Como eu poderia ter ido se o corpo tivesse reagido de uma outra maneira.

6.

Uma pessoa está e deixa de estar.

Talvez um dia, quem sabe, o António me possa tocar no ombro e dizer que existe um restaurante perfeito para nos conhecermos.

Talvez aí possamos os dois, mais uns quantos amigos comuns já no outro lado, olhar em conjunto para os nossos filhos e netos aqui em baixo.

Ou lá em cima, sei lá.

Por isso, fiquem bem.

Desenhem planos para o fim-de-semana, façam o que têm adiado, telefonem a quem não telefonam há muito, façam planos, apaixonem-se.

Porque isto é mesmo assim.

Temos todos um cateter e um dia isto dá para o torto pois alguém nos chama para uma sala que não é daqui.

Um abraço, Cristina.

Que a memória um dia seja mais suave.

Que tudo um dia possa fazer mais sentido.

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