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1.
Em Portugal existia muito a ideia de que a morte suaviza os pecados e pecadilhos da vida. Já vimos canalhas serem glorificados ou perdoados pela opinião pública.
Tinha muito a ver com a nossa ideia de morte.
Do medo desse momento que, por estranho que nos pareça, chegará a mim e a si.
Por isso, preferíamos dizer "falecer" do que "morrer" - precisamos de palavras que suavizem o nosso próprio incómodo.
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2.
Mas alguma coisa está a mudar - e para pior.
A morte de João Rendeiro, encontrado enforcado na sua cela, é sintomática dessa alteração.
Vou por partes.
E começo por dizer o óbvio.
A sua morte não suaviza a cegueira do seu comportamento.
A ambição desmedida.
A falta de escrúpulos.
O deslumbre em relação a si próprio.
O ex-banqueiro, que veio do nada para conquistar o mundo, foi vítima de si próprio, do seu ego, da sua triste arrogância.
Morreu, mas esse foi o legado que deixou.
Um homem "maior do que a vida" a quem a vida se vingou com tristes juros.
3.
Porém, não posso deixar de ficar chocado com muitos comentários ouvidos e lidos nas televisões, redes sociais, caixas de comentários, fóruns.
Fizeram-se piadas.
Contaram-se anedotas.
Colocaram-se smiles.
Disseram-se coisas impensáveis em relação a um suicida ainda com o corpo quente.
Gente que lamentou que a morte tenha sido rápida.
Gente inclemente, implacável, violenta.
4.
A minha preocupação não é com João Rendeiro.
A minha preocupação é connosco, com o que nos estamos a transformar, com o ressentimento que cresce, com o facto de começarmos a olhar para as figuras públicas como personagens de uma série da Netflix ou da HBO.
Podemos dizer tudo no conforto da nossa página de Facebook, Instagram ou Twitter.
Podemos dizer tudo sem qualquer consequência.
E começamos a perder a noção e qualquer pingo de moral.
Um tipo que se acaba de enforcar não deixa de ser uma má pessoa se for uma má pessoa.
Um tipo que decide pôr fim à sua vida não deve ser limpo das suas impurezas.
Mas bolas...
... por um princípio de humildade em relação à vida e à nossa passagem por aqui, não seria melhor fazer silêncio e respeitar o momento?
5.
Foi hoje feita a autópsia de João Rendeiro - um português que ascendeu ao paraíso dos poderosos e que caiu com estrondo na lama dos que se perdem.
Morreu numa prisão da África do Sul.
Mas podia ter morrido em Portugal - como aconteceu no nosso país com mais de 300 presos nos últimos cinco anos.
Não é muito popular dizê-lo, mas acreditar na democracia e numa ideia de liberdade é acreditar também que dentro de uma prisão quem cumpre pena deve cumpri-la até ao fim e em segurança.
Não nos podemos conformar com os relatos que ouvimos do que acontece nas prisões portuguesas. De continuação dos tráficos, de violações, de suicídios e ajustes de contas.
Os presos devem ser tratados com dignidade.
Não só por causa deles, mas pela dignidade do próprio Estado e da confiança que precisamos ter no sistema.
6.
Será conversa para um outro postal.
João Rendeiro morreu na África do Sul e muito poucos o chorarão.
Mas o problema são as lágrimas que deveríamos chorar por este tempo em que todos atiram a primeira pedra como se fossem deuses.