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1.
Meu querido Daniel Sampaio
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O país escutou-te na entrevista em que disseste o que havia para dizer sobre o trabalho da comissão, sobre os obstáculos que encontraram, sobre a pedofilia na Igreja e sobre a condição humana.
Escutei-te como o país.
Ainda me comovo com o modo como colocas em palavras simples ideias tão complexas. O "Mal", seja isso o que for, não podia ter um inimigo mais eficaz, não há forma mais eficaz de "Bem" do que desmontar os ardis com a força da simplicidade e de uma ideia de "verdade".
Daniel Sampaio é o pior inimigo dos pedófilos e de quem os encobre na Igreja
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2.
Temos uma relação muito próxima, mas só neste postal te trato por tu, pareceu-me mais conveniente neste contexto.
Depois da entrevista tive a urgência de te escrever. Ficam sempre palavras por dizer mesmo quando não as economizamos.
Escrevo-te então este postal sem selo e necessidade de correio azul. Um postal que partilho com quem me lê. Um postal acerca de uma amizade que começou como se não fosse nada.
Lembras-te com certeza. Fomos convidados, mais a Ana Drago, para um programa de televisão que a RTP quis que se chamasse Conversa Privada. Fui à primeira reunião com a ideia de que o meu papel seria o de perguntador, afinal queriam as minhas opiniões.
Estavas na reunião, conseguiste sorrir quando vos disse que não estava interessado em participar - recordo-me de ter dito que as minhas opiniões não interessavam a ninguém, sobretudo quando confrontadas com as tuas, deixei nas entrelinhas. Fiquei ainda assim de pensar umas horas. Não precisei delas porque me tranquilizaste numa conversa. Senti-me em casa.
O programa aconteceu. E outros projetos se sucederam.
Amparaste-me na morte da minha mãe. Estiveste quando o meu pai resolveu que já chegava de tanto combate pela vida.
3.
Nestes anos, vi-te a atender telefonemas de doentes. A orientar pessoas à beira do abismo e prontas a tudo se, no outro lado da linha, não te sentissem presente. Sempre calmo, a dizer-lhes o que precisavam ou tinham de ouvir, a pedir-lhes provas de confiança, a inquietares-te ao desligar. Um mundo de choro, de inferno profundo, de um sofrimento no limite do tolerável.
Como consegues resistir, Daniel? Como consegues resistir mantendo a capacidade de te emocionar quando desligas o telefone ou um doente te sai do gabinete?
Vi-te a tratar de jovens adolescentes. Pais e mães aterrorizados pela ameaça de perderem para sempre os seus filhos. Miúdos que se mutilam para substituir a dor psicológica por uma mais suportável dor física. Escreveste livros acerca deles, sobre muito do que neste mundo é indizível, salvaste centenas de vidas e continuas a ficar apavorado com a mera possibilidade de acordares a meio da noite com o desespero de alguém. Telefonemas a anunciar pontos finais parágrafos.
4.
Almoçámos muitas vezes no Pote. Chegámos a levar o João Almeida, empregado do restaurante e nosso amigo, ao programa. Falou-nos do que foi a luta da sua vida, o que sentiu no primeiro dia de trabalho numa tasca de Lisboa quando, com 14 anos, ali chegara sozinho, medroso, mas pronto a enfrentar as dificuldades. Sei bem o quanto insististe para contar a sua história, o quanto admiras quem luta com esperança e coragem quando, à sua frente, apenas existem cabos que parecem inultrapassáveis.
Tu e os teus três filhos. Sportinguistas de alma, coração e lugar cativo. Tal como Jorge, teu irmão.
Uma família que fiz minha.
Levei-te o Afonso a casa quando nasceu.
E compraste um vestido para a Benedita - tão bonito, querido Daniel.
És a pessoa que um dia eu gostaria de ser.
A pessoa que um dia ambiciono ser.
Até já.
Aconteça o que acontecer será sempre um até já.
E o país pode confiar que estarás vigilante e que não deixarás cair o assunto.
Na verdade, nunca deixaste cair nenhum assunto que envolva sofrimento de quem não tem como se defender.
Tu és o melhor de todos os aliados dos que realmente acreditam em Deus, mesmo que em ti Deus seja uma dúvida permanente esta é a verdade.
E o Papa Francisco já o sabe.
Eu sei que o sabe.