Postal do Dia

Já ninguém escreve postais, mas a TSF insiste e manda bilhetes postais com destinatário. Em poucas palavras mas com ideias que fazem pensar: "Postal do Dia", com Luís Osório. De segunda a sexta-feira, depois das 18h00 e sempre em tsf.pt.

José Mourinho puxou o destino pelos colarinhos

1.

José Mourinho fez ontem 60 anos.

E quero hoje celebrá-lo.

Não pelas vitórias ou pela aura de "especial", pelo que conquistou de estatuto, pelo modo como encarou alguma perda de influência, como se soube reinventar quando as vacas ficaram menos gordas.

Foi de uma enorme inteligência a maneira como se adaptou a um novo tempo sem perder as características que o levaram a ser grande, o alvo a abater, a besta negra de muitos.

Não é por tudo isso que hoje lhe dedico o postal. É por ser um português que se assumiu no mundo sendo aquilo que nós não costumamos ser.

Se nós somos muitas vezes medrosos, José Mourinho foi corajoso.

Se nós somos humildes e nos habituamos a pensar com o que temos, ele soube ser o contrário, contrariou a ideia de que somos menos, de que somos menores, de que não podemos chegar a Londres, a Madrid, a Milão e dizer que somos capazes de ser melhores do que eles, de que não há medos.

2.

José Mourinho conquistou o mundo a pulso.

E não te esqueças que nasceu em Setúbal. Que passou a sua juventude a ver gente com fome, gente a ir para a pesca sem saber se a faina iria correr bem ou se iriam voltar do mar, gente que combatia todos os dias pela possibilidade de o dia seguinte chegar.

Em Setúbal sobrevivia-se.

E ele, o pequeno José, filho de um antigo guarda-redes que tinha esculpido o esforço em cada ruga do rosto, soube dizer para si próprio que não havia razões para nos rebaixarmos perante a vida e os outros.

Os ricos.

Os poderosos.

Os estrangeiros.

Ser português não podia ser um estigma, uma tatuagem na cara, uns eternos "pobrezinhos, mas honrados".

3.

Quero abraçar o José pelos seus 60 anos.

Por uma vida em que soube agarrar pelos colarinhos o destino e fazê-lo seu.

Sinceramente, não é para todos.

E lembro-me bem da primeira vez que o vi.

O José abriu-me a porta do balneário do treinador principal do FC. Porto, Bobby Robson.

Eu trabalhava na revista Visão e chegara para entrevistar o fleumático inglês. Fiz conversa com José enquanto Robson não chegava. Ficámos à conversa sobre coisa nenhuma. Perguntou-me de onde era, disse-me depois que a sua mulher lia a Visão, ele apenas quando calhava. Trocámos palavras sobre o Porto e a sua adaptação à cidade, mais trivial só se falássemos dos Clérigos e das Francesinhas.

Mas houve uma coisa que não esqueci.

Chamavam-lhe tradutor e eu quis saber o que ele pensava disso. Anotei o que me disse num bloco de notas.

"Isso tem a ver com Portugal. Já reparaste que nós próprios quando falamos dos nossos compatriotas dizemos os portugueses e não "nós" os portugueses?

Curioso como as coisas são.

Quando o vi neste dia longínquo pareceu-me um adjunto quando era adjunto. Foi um pouco como ir ao encontro de Tito de Morais e não reparar em Mário Soares. Ou passar por Thatcher e ficar fascinado com Edward Heath.

4.

Da segunda vez já foi outra coisa.

Recebi-o (com Daniel Sampaio e Ana Drago) no Conversa Privada, programa que tinha na RTP.

José era treinador da União de Leiria.

Estava a fazer resultados incríveis e talvez já soubesse naquela altura que na época seguinte seria treinador principal no FC. Porto.

O Daniel, psiquiatra de almas, antecipou o seu futuro - recordo como se fosse hoje.

"Um dia ainda o havemos de ver a subir ao topo da montanha".

Sabem o que Mourinho respondeu?

Que o importante era não esquecer que os que tentam estar de bem com Deus e o Diabo acabam por desagradar a todos - que podia perder, mas que nunca haveria de se esquecer que o caminho é feito de escolhas.

De escolhas e coragem.

Mais nada havia a dizer.

Percebi aí que ele não estava no caminho certo.

Que ele era o seu próprio caminho.

Muitos parabéns, José.

E meu amigo, isto ainda não acabou.

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