Postal do Dia

Já ninguém escreve postais, mas a TSF insiste e manda bilhetes postais com destinatário. Em poucas palavras mas com ideias que fazem pensar: "Postal do Dia", com Luís Osório. De segunda a sexta-feira, depois das 18h00 e sempre em tsf.pt.

Luís Miguel Cintra usava sempre o mesmo casaco quando ia ver as estreias de Silva Melo

1.

Celebrou-se o Dia Mundial do Teatro e lembrei-me de Jorge Silva Melo e de Luís Miguel Cintra.

Não há duas figuras tão fortes e tão presentes, mesmo tendo Jorge morrido e Luís Miguel partido dos palcos para se refugiar longe dos olhares de quem o admirou em tantos papéis, em tantos textos, em tantas encenações.

Sim, recordei-me dos dois quando soube das comemorações.

Porque Silva Melo e Luís Miguel Cintra vão ao encontro do que acredito ser a essência da arte - um lugar de criação, um lugar político, um lugar de questionamento, de interrogação, de paixão e amor, de ódios e vísceras, de contestação.

2.

Os dois fundaram a Cornucópia.

Os dois viveram uma relação amorosa.

Os dois quebraram essa relação e seguiram caminho - o Luís Miguel mantendo-se na Cornucópia, o Jorge fundando os Artistas Unidos.

Fizeram muitos papéis, entraram e realizaram filmes, potenciaram jovens atores e atrizes, talentosos cenógrafos e agitadores.

Ofereceram-nos textos que de uma outra maneira nunca teríamos lido.

3.

E sempre pairaram.

Jamais pareceram estar na dimensão dos comuns mortais, estando vivos e despertos nunca pareceram estar vivos como nós, estavam de uma outra maneira.

Pertenciam sem pertencer.

Abraçavam, mas o abraço era diferente.

Falavam e nós fazíamos silêncio porque eles eram uma biblioteca, carregavam poeira e fantasmas, eram guardiões de memória e de uma fronteira qualquer entre o sonho e a realidade que abominavam.

Jorge Silva Melo morreu fez agora um ano.

Mas continua vivo, como sempre esteve. Porque o Jorge nunca viveu como nós, era brutal, chato e insubmisso, mas verdadeiramente vivo quando desaparecia da circulação, quando ficava em casa enrolado a textos e perdido nos livros e no seu Deus que amava tanto como a possibilidade do Ser Humano poder ser mais, desejar mais, querer tudo.

O Luís Miguel continua vivo, mas já não o vemos por ter decidido poupar os nossos olhos à sua progressiva falta de memória e decadência física. Mas se pensar um bocadinho percebo que nada se alterou pois ele continua onde sempre esteve, nas sombras do teatro, do texto, dos clássicos.

Quando estavam os dois vivos era também a morte que pairava.

Quando estiverem os dois mortos é a vida que continuará a ser pressentida quando deles nos lembrarmos.

4.

Combateram uma parte da vida contra os poderes.

Ou, talvez seja mais verdadeiro dizer que combateram sempre na ideia de que qualquer batalha para manter a liberdade de criação e de espírito passa por combater o que está instituído.

Mas os dois estão juntos.

Como aliás sempre estiveram.

A vida e a morte não os separaram.

Da mesma forma que a separação física de décadas não os separou na essência.

Fica o espírito dos dois, o espírito do teatro, as histórias e os mitos.

Também o mito do amor.

O de que Luís Miguel Cintra assistia às estreias de Jorge Silva Melo usando o mesmo casaco que tinha quando aconteceu a discussão que os separou.

Pode ser mentira, sei lá.

Não interessa.

É o teatro.

É o palco, o único lugar em que a verdade é possível.

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