Postal do Dia

Já ninguém escreve postais, mas a TSF insiste e manda bilhetes postais com destinatário. Em poucas palavras mas com ideias que fazem pensar: "Postal do Dia", com Luís Osório. De segunda a sexta-feira, depois das 18h00 e sempre em tsf.pt.

O Dia da Mulher é uma treta

1.

É hoje que quero escrever sobre as mulheres.

Não me apeteceu fazê-lo no dia em que toda a gente falou, como se existisse um dia em que pudéssemos ficar aliviados dos nossos pecados coletivos, um dia de libertação em que os homens podem dizer o quanto defendem a igualdade de género, o quanto as mulheres são extraordinárias.

Claro que são.

Mas é hoje que quero dedicar-lhes o postal do dia.

Simbolicamente hoje.
Como poderia ser na próxima segunda, terça ou sexta. Ou na terça, quinta e sábado de um qualquer mês do ano.

2.

É hoje que quero escrever para a Benedita, a minha única filha. Fez quatro anos no dia dos namorados, mas eu não quero que ela viva de convenções ou com verdades adquiridas - se vivêssemos só de convenções e de verdades adquiridas ainda nos matávamos na arena dos gladiadores e às mulheres ainda não lhes era permitido viajar sem a autorização dos maridos.

Sabiam que era assim no dia 24 de abril de 1974?

Gostava que a Benedita pudesse viver livre, sem constrangimentos e sem a pressão de ter de fazer mais, de ter de ser mais, de provar todos os dias mais por ser mulher.

Gostava que a minha filha pudesse andar na rua vestida como lhe apetecer sem pensar que pode ser agredida, apalpada ou assediada.

Gostava que pudesse não estar à mercê de um mundo que elogia as mulheres, mas que continua a dar primazia aos homens.

Gostava que pudesse ser atrevida nas ideias, que saísse fora da caixa e que agarrasse o mundo com paixão sem que as ideias, a caixa e a paixão sejam qualidades desvalorizadas quando engravida ou quando tem o período - se vier a sofrer como tantas mulheres de dores insuportáveis de que não tem qualquer culpa.

Gostava que pudesse ter curiosidade sobre o mundo e que dançasse, namorasse, viajasse e arriscasse sem que o mundo ache que é maluca, que é inconsciente, que é promíscua, que é inconsequente.

3.

É hoje que quero falar das mulheres.

Da Benedita e do que desejo para ela e para todas as beneditas - para a tua que me ouves, para ti que me ouves, para as meninas que ainda não nasceram, as que são esperança em estado bruto.

A minha Benedita que não nasceu fora do tempo, ela é um sinal de um novo tempo.

Um tempo mais justo e decente.
Não podemos desejar menos do que isso.

E sabem...

... quando ela nasceu, quando a vimos pela primeira vez vinha como se já soubesse o que isto era.

Um lugar de combate em que devemos lutar pelo que acreditamos, pelo que podemos alcançar, pela posição que é justa.

Quis dizer-te isto hoje.

Não na quarta-feira, hoje.

Dia 10 de março de 2023, o dia em que, como todos os outros dias, sentiste algum tipo de discriminação ou violência por seres mulher. Pode ter sido uma coisa pequenina, alguma coisa sem qualquer importância, mas todos os dias há um olhar guloso, um lugar que não ocupas, uma desconfiança, uma dúvida, um gozo e até um elogio misturado com paternalismo.

Pensa se foi verdade.

Fecha os olhos e rebobina este dia - do momento que te levantaste ao momento em que saíste de casa, da chegada ao emprego à hora de almoço, do regresso, de uma compra, de uma notícia.

Eu sou um homem e um privilegiado.

Fui privilegiado toda a vida por sê-lo.

Que sejamos todos privilegiados por sermos inteiros, por sermos pessoas. Que nenhuma mulher pague um preço por ser mulher.

Que a Benedita possa voar como lhe apetecer voar.

Que possa ser livre sem ter de pedir autorização à polícia de costumes que ainda parecemos ter na nossa cabeça.

Um bom dia da mulher.

Que é hoje.
E amanhã.

E na próxima semana.

Só não o é no dia em que foi convencionado que o fosse.

Recomendadas

Outros Conteúdos GMG

Patrocinado

Apoio de