Sinais

"Sinais" nas manhãs da TSF, com a marca de água de sempre: anotação pessoalíssima do andar dos dias, dos paradoxos, das mais perturbadoras singularidades. Todas as manhãs, num minuto, Fernando Alves continua um combate corpo a corpo com as imagens, as palavras, as ideias, os rumores que dão vento à atualidade.
De segunda a sexta, às 08h55, com repetição às 14h10.

Sinais

Pegadas

Pegadas

El Hatillo é um aglomerado urbano próximo de Caracas. Foi na praça Bolívar de El Hatillo, rodeada de casas pequeninas coloridas e de restaurantes muito procurados pelos turistas, que Heriberto Gomes, arista plástico luso-venezuelano, recolheu ontem, durante duas horas, numa enorme tela branca estendida no chão, pegadas dos visitantes. Eis o que poderemos chamar, literalmente, obra em andamento. Heriberto Gomes já recolheu, desde 2021, pegadas de gente apressada ou mais contemplativa, em Madrid, Barcelona, Lisboa, Funchal, na costa-riquenha Cartago, na mexicana Monterrey. Ele explica, deste modo, o projecto a que chamou "A imortalidade do momento": "As pessoas passam por cima, deixam as marcas dos sapatos e fazem realçar o relevo, o chão da calçada, características de cada cidade. Algumas pessoas", disse Heriberto aos jornalistas, nem percebem que estão passando por cima de uma obra de arte".

Ode à cebola do Niassa

Ode à cebola do Niassa

O enviado do jornal El Pais a Nairubi, um povoado de Mayune, na província moçambicana de Niassa, revela-nos " a pele curtida, as mãos calejadas" de Raja Amimo, o agricultor sentado num chão de cebolas. Amimo veste uma camisola já desbotada do Borussia de Dortmund. Ele é um dos camponeses desta região pobre entre as mais pobres de Moçambique que, com o apoio de uma ONG espanhola, procuram libertar-se da monocultura do milho. A nova estratégia parece dar resultado. Com a introdução do arroz, do sésamo, da soja, das cebolas, Amimo pôde comprar uma moto, cobriu a casa com uma chapa mais resistente, colocou painéis solares para obter electricidade.

O homem é um bicho esmochado

O homem é um bicho esmochado

Se eu fosse editor do jornal digital Bahia Notícias hesitaria na paginação de um caso de polícia que extravasa o âmbito habitual. A notícia bem podia ser uma derivação de "Sagarana", de Guimarães Rosa, particularmente do conto "Conversa de Bois". Talvez paginasse em Sociedade, talvez numa difusa secção ficcional. É claro que a acção dos contos publicados em 1946 decorre em Minas Gerais enquanto a notícia a que me refiro foi espremida esta semana de um caso de polícia em Caculé, no estado da Bahia, embora no chamado Polígono das Secas do Nordeste.

Um ramilhete de emoções

Um ramilhete de emoções

A 9 de março de há cem anos, os jornais relatavam o funeral do conselheiro Barjona de Freitas, ocorrido na véspera. Monárquico, alinhado com o Partido Regenerador, o militar de carreira Barjona de Freitas, foi governador de Cabo Verde, deputado e ministro das Obras Públicas durante o curto governo de Venceslau Lima, o geólogo especializado em carvões vegetais, casado com uma neta da Ferreirinha. Nessa curta passagem pelo ministério, entre maio e dezembro, já com a República à porta, Barjona de Freitas tentou dar algum fôlego, tão necessário um século depois, à expansão da ferrovia. Tal como tentara compreender e atalhar as causas da fome que, em tempo de seca, provocava enorme mortandade nas ilhas da morabeza. Fico a pensar se Barjona de Freitas se terá cruzado com José Bernardo Alfama, o músico e poeta que publicou uma das primeiras compilações de música de Cabo Verde. Alfama, contemporâneo de Eugénio Tavares, era republicano, mas incluiu nesse livrinho a morna alusiva à passagem do príncipe real D. Luís Filipe nas ilhas flageladas pelo vento leste e pelo abandono.

A mão invisível

A mão invisível

Neste dia, é importante reter o "apelo urgente" que António Guterres lança em artigo escrito para o jornal Público. O secretário geral das Nações Unidas assinala mais um 8 de Março denunciando o que considera "falta de progresso nos direitos das mulheres". Fica claro que, em muitos domínios, esses direitos não têm progredido, antes regridem. Tomai este número sublinhado a traço grosso por Guterres: "Ao ritmo actual, serão necessários mais 300 anos para alcançar a plena igualdade de género".

Regresso ao Jardim do Paço

Regresso ao Jardim do Paço

Quando chegou a Castelo Branco, Saramago anotou: "Todos os caminhos vão dar ao Paço". O escritor viajante viu com prazer o museu Francisco Tavares Proença Júnior, então dirigido pelo poeta António Salvado. Maravilhou-se diante de um Santo António atribuído a Francisco Henriques e perdeu-se no labirinto feliz do jardim onde o imaginei caminhando lentamente com o poeta. Quando há muitos anos entrevistei António Salvado, ele mostrou-me a fonte cujo "contorno de aragem líquida" corre nos versos inaugurais de "Jardim do Paço", um dos seus livros encantatórios dos anos 70 que mereceu, já em finais de 2020, uma delicada e sumptuosa edição da Caleidoscópio, com 50 pinturas inéditas do arquitecto e cenógrafo José Manuel Castanheira, um grande artista seu amigo e, como ele, natural de Castelo Branco. Nunca esquecerei a afabilidade desse homem raro que sempre me enviou, desde então, as sucessivas edições dos seus livros. De cada vez que regresso à cidade onde o poeta mergulha esta manhã nas "águas do sono", revisito a Escadaria dos Reis, os recantos em que jogos de água surpreendem o visitante, o Jardim Alagado, os canteiros de buxo deste jardim onde ele fitou o Paraíso. Da última vez, ele estava doente, falámos ao telefone, não fui capaz de o desafiar a vir comigo espraiar os olhos até ao outro lado do passadiço que nos leva ao espaço das antigas hortas e olivais e onde ainda há vestígios de uma mata de loureiros. Convoquei os seus versos para, nesta rádio, seguir viagem.