Sinais

"Sinais" nas manhãs da TSF, com a marca de água de sempre: anotação pessoalíssima do andar dos dias, dos paradoxos, das mais perturbadoras singularidades. Todas as manhãs, num minuto, Fernando Alves continua um combate corpo a corpo com as imagens, as palavras, as ideias, os rumores que dão vento à atualidade.
De segunda a sexta, às 08h55, com repetição às 14h10.

Os acordeões invisíveis de Sara Blanco

Não frequento, nem penso vir a frequentar, qualquer rede social. Mas acabo de me render a Sara Blanco, 91 anos, doente de Parkinson, influenciadora (como se diz). A edição digital do El Pais revela-me a contagiante humanidade de Sara domando o monstro que se apossou do seu corpo, num registo de um pouco menos de dois minutos no Instagram.

Sara está diante do espelho, a boina negra deixando ressaltar a bela cabeleira branca revolta, cobrindo de um vermelho carmim os lábios, revelando aos mais de 150 mil seguidores as suas roupas quase juvenis, súbito o cabelo pintado de azul, o sorriso de Sara ainda imune ao distúrbio degenerativo que a consome. Sara Blanco está sentada e olha-nos, sorrindo, com determinação combativa, duas argolas bailando como frutos pendentes dos lóbulos, as mãos pousadas sobre os joelhos sempre agitadas como se peneirassem o grão dos dias. Agora ela diz: "A minha cabeça está noutro lugar, não está na enfermidade que tenho". E, de novo, sorri. Agora passa um cordão de ouro em redor do pescoço, tenta prendê-lo sob a nuca; depois, as mãos espalham, em frémito de dança, as pedras de jade, esmeraldas, safiras, pingentes de cristais sobre o colo. E agora ela quebra dois ovos numa tigela, separa gema e clara como se reproduzisse um delírio percussionista de Naná Vasconcelos, como se estivesse tocando maracas. Ela doma o flagelo como se os seus movimentos resgatassem dopamina do ar, imagino Naná estupefacto diante do ritmo das mãos de Sara Blanco. Imagino que o grande percussionista repete para ela uma frase antiga, que sussurra aos ouvidos dela, junto aos lóbulos de que pendem argolas de ouro: "Quando você aprende com o corpo, o seu corpo lembra-se". O corpo dela está a lembrar-se no Instagram, ela separa gemas e claras como se tocasse maracas. E agora tenta ajustar o belo casaco azul, tenta acertar os botões nas casas, numa sequência de movimentos rápidos, como se tocasse acordeões invisíveis ou aquela concertina basca de Kepa Junquera, as mãos dela produzem um som que raspa, que arranha, um som semelhante ao das cabaças cheias de sementes.

"Não se assustem, não fiquem em casa", diz ela. E eu, seguidor de Sara Blanco porque o meu corpo ainda se lembra, gravo e saio para a rua, por vezes apreensivo com o que julgo ser uma lentidão de movimentos mais presos, a cabeça tomada por sons de maracas, sopros de Naná Vasconcelos, o fole doido da concertina basca de Kepa Junquera soando manhã dentro, as unhas azuis de Sara desenhando pássaros no ar.

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