Sinais

"Sinais" nas manhãs da TSF, com a marca de água de sempre: anotação pessoalíssima do andar dos dias, dos paradoxos, das mais perturbadoras singularidades. Todas as manhãs, num minuto, Fernando Alves continua um combate corpo a corpo com as imagens, as palavras, as ideias, os rumores que dão vento à atualidade.
De segunda a sexta, às 08h55, com repetição às 14h10.

Quietação

Uma noite destas, houve gritos e pancadaria, em vez de oração, no interior da igreja das Flamengas, em Alcântara. Responsáveis pela Real Irmandade de Nossa Senhora da Quietação envolveram-se com o padre, capelão da Irmandade, em berraria, bofetadas e empurrões. A presidente da Real Irmandade de Nossa Senhora da Quietação admite que chegou a ter na mão um círio e que ameaçou agredir com ele o padre, caso este não largasse o Juiz da Irmandade. O padre garante que foi agredido com o círio e que viu por terra os óculos. E que não deu a outra face aos três sopapos recebidos, era o que faltava. A coisa meteu polícia, a crónica reza que mulheres antigas despacharam o terço ao relento, lá dentro Irmandade e capelão reclamavam voz de comando, o caso seguirá agora a via sacra da Justiça terrena. Da divina tratará o Vaticano que pode ser para aqui chamado. É só inquietação.

A notícia toca a minha laicidade atónita na justa medida em que abala a doce melancolia da palavra Quietação cantada num poema de Vinicius. O poema exalta o silêncio que sugere "uma penetração de olhares calmos", o "silêncio pesado que desce" e "curva todas as coisas religiosamente". "O " murmúrio que sobe é como uma oração da noite".

O meu coração laico apazigua-se por vezes em igrejas vazias, nelas encontrando, em luz coada de vitrais, aquilo que Adélia Prado chamou " a paciência de Deus". Agora pressinto as mãos subitamente trémulas de Nossa Senhora das Dores quase deixando cair a sua roca, perante o tumulto. Ali perto, a Senhora da Quietação tenta conter um sobressalto, a roca mais firme entre os dedos, mas o rosto fechado em inesperada tristeza. A ela se ampararam, em tempos idos, as monjas flamengas fugidas ao clamor do mundo. Em seu suave manto pousou o olhar de frei Agostinho de Santa Maria que a descreveu "em tudo perfeitíssima". Ali a dois passos, sob a revoada grosseira de bofetadas e soezes palavras, estremece o coração de D. Pedro II que aqui foi deixado em quietude para sempre, não acompanhando até ao Panteão o corpo de seu amo, já de si dado a estranha sonolência.

A bela palavra quietação, assim trazida a um caso de polícia à hora do terço no convento das Flamengas, sacode os versos em que foi tecida por Santa Teresa de Ávila ou Camilo Pessanha, Pessoa ou frei Agostinho da Cruz.

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